O Jogo e a Forma Física

A condição física é, no futebol, dos parâmetros mais fáceis de recorrer para explicar momentos em que as equipas se apresentam abaixo do seu rendimento expectável, quando quebram em fases tardias dos jogos, ou decréscimos de rendimento em períodos mais congestionados de jogos.

É unânime que futebolistas de elite precisam de estar no topo das suas capacidades para corresponder às exigências tácticas, técnicas e físicas da modalidade. Talvez importe, então, partir desta hierarquia para começar a discriminar o que é relevante na preparação do futebolista. Sendo o tempo de treino e a disponibilidade física do jogador limitados, importa ser criterioso na escolha dos conteúdos mais pertinentes na performance dos atletas e da equipa. É, no fundo, na hierarquização desses conteúdos que se consubstancia fatia considerável do papel do treinador. Assim, a posição do jogador numa primeira instância, as suas características diferenciadoras, e a missão táctica que desempenha no modelo de jogo da equipa parecem questões-chave para responder à million dollar question: o que é estar em forma?

 

Existem, claro, salvaguardas a fazer. Alguns dos indicadores poderão ser globais: por exemplo, a morfologia corporal, a estabilidade articular, a força, a flexibilidade, ou os níveis de agilidade/coordenação podem ser factores determinantes na probabilidade do aparecimento de lesão. Contudo, ainda antes da incidência de lesão, procuramos aqui falar sobre performance: o jogo é rico em intermitência, acções sucessivas e intensidades variadas; a actividade lenta contrasta amiúde com intensidades altas; a intensidade crescente do jogo faz com que, nos últimos anos, a exigência anaeróbia se tenha sobreposto à aeróbia, decisiva em acções como saltar mais alto ou correr mais rápido; simultaneamente, a variabilidade dos gestos do jogo torna decisivas capacidades como a aeróbia, a anaeróbia, a força, a resistência muscular, a velocidade, a agilidade e a flexibilidade.

Nesta panóplia de capacidades solicitadas e na especificidade a que o jogo o faz, nasce a tremenda dificuldade em criar situações analíticas que simulem a sua natureza. Parte dessa dificuldade deve-se também a que, como referido, a chave do sucesso na periodização de tarefas de treino resida em perceber o quando e como, ou seja, a definição clara do que mais importa e em que momentos. Não querendo entrar no capítulo da periodização dos conteúdos, arrumemos a questão de especificidade: nem todos os atletas poderão ser extraordinários em tudo. Contudo, a equipa tende a funcionar como uma espécie de orquestra, vivendo a harmonia colectiva de diferentes instrumentos, tocados em diferenciados ritmos. É nessa complementaridade que urge identificar:

 

1) qual a missão táctica que pretendo atribuir a esta posição no meu modelo?;

2) quais as características diferenciadoras deste jogador e de que forma pode ajudar a tornar melhor a minha equipa?;

3) que carências condicionam a sua prestação na minha forma de jogar? É possível melhorá-las na individualidade, camuflá-las no colectivo, ou é possível fazê-lo em simultâneo?

Nesse sentido, depois de responder a algumas destas perguntas e de uma clara definição de um conjunto de ideias que consubstanciem o modelo, numa fase inicial, e o plano de jogo, numa fase posterior, deve-se procurar que os jogadores evoluam no sentido do cumprimento dos pressupostos desse modelo nas melhores condições possíveis. Caso o meu modelo exija que as minhas linhas estejam subidas, e o plano de jogo inclua a possibilidade do adversário procurar regularmente a profundidade, talvez precise que a linha defensiva reaja e se desloque rápido; caso o meu modelo de jogo implique que o ponta-de-lança seja frequentemente solicitado no jogo aéreo, talvez seja relevante procurar que este tenha boa capacidade de impulsão, mas… de que vale a capacidade de impulsão sem o timing de ataque à bola? Sem a capacidade temporal e espacial de perceber onde está o adversário, a linha defensiva, a bola e a baliza?

 

 

É no seguimento disto que nos parece importante que a uma melhoria na condição física esteja sempre alocada uma melhoria da capacidade de… jogar o jogo; não um jogo qualquer, mas o jogo da especificidade: a de exponenciar características individuais e fazê-las aparecer mais vezes, a da posição e, por fim, a melhor condição física para jogar um modelo específico, com ideias concretas. A equipa estará em tão melhor forma quanto mais fielmente for capaz de jogar o seu jogo a intensidades altas e com escolhas acertadas.

 

Não é este artigo alheio, claro, à urgência do trabalho preventivo de lesões, que deve aludir ao historial clínico do jogador, à especificidade da sua condição física, mas também ao combate de rácios de força desajustados, ou ao combate aos problemas estatisticamente mais recorrentes do futebolista, como entorses ou lesões nos posteriores da coxa. Contudo, no limite, não estará também o aumento substancial de lesões nos últimos minutos de cada parte – em especial na segunda - relacionado com a fadiga e, consequentemente, com alguma ausência do controlo neuromuscular e capacidade de manter a estabilidade dinâmica articular em fadiga? Não se poderá combater a lesão criando especialistas, em fadiga, na manutenção prolongada no tempo e em intensidades controladas em treino, numa determinada tarefa táctico-técnica específica do modelo de jogo do treinador? Ou seja, especialistas em… jogar?

 

Artigo da autoria de Alexandre Costa, preparador físico da equipa técnica de Bruno Dias.

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